12 setembro, 2008

Em um barraco qualquer


Em um barraco qualquer, em uma favela qualquer no vasto território brasileiro, em um futuro não muito distante, um casal tenta descansar, deitado em seu leito após um árduo dia de trabalho para ambos. Ela, após realizar a mágica de dividir dois paezinhos e meia panela de feijão sem tempero entre seus seis filhos e colocá-los para dormir. Ele, logo em seguida de quase quebrar a cabeça pensando como pagar as contas e alimentar as oito bocas com aquele ínfimo salário que acabara de receber horas antes.
Ela, apesar de estar com os olhos fechados, não conseguia dormir. Estava deitada de lado, de costas para ele, raspava levemente a unha na lasca do tijolo mal rebocado da parede a sua frente. O lençol esburacado tapava-lhe apenas da cintura para baixo.
Ele, olhos abertos, apesar do escuro, olhava para o teto que abrigava as várias goteiras quando chovia. Não estava coberto pelo lençol. Tinha costume de colocar a mão por debaixo da cabeça, sobre o travesseiro improvisado com as velhas roupas usadas, quando estava acordado, dava-lhe a sensação de que conseguia pensar melhor.
Ambos escutavam suas respirações conforme o silêncio se acentuava. Minutos antes podiam ouvir três de seus filhos reclamarem da fome, falando entre eles, antes de pegar no sono (se é que dormiram).
Ela estava quase pegando no sono quando pensou ter ouvido seu nome dito pelo companheiro. Voltou ao mundo dos acordados e constatou que ele a chamara, e estava na segunda tentativa disso. A voz era sussurrada, balbuciada, com um sofrer que ela não tinha visto. Quando pela terceira vez ele chamou, ela respondeu:
- O que, homem???
- Hoje... – começou ele.
- Fala logo...tu sabe que amanhã eu levanto às 4:00 hs. – replicou ela.
- Sabe o Sebastião? – perguntou ele ainda sussurrando.
- Que Sebastião? Eu lá sei quem é...fala duma vez, homem!!
- É que ele fez umas horas extras lá no trampo...
- E daí? – virou-se ela já sem paciência.
- Quando nos deram o salário ele ganhou duas notas de 20 “real”...
- Duas??? – perguntou ela saltando da cama.
- Pois é...duas... – ratificou ele – Quanto tempo nós não vemos uma, né mulher? - continuou.
- Pois vou te confessar que nunca vi uma!!! Como ela é? Tu chegou a tocar?
- Vi sim...melhor ainda...peguei na mão...deu uma vontade sair correndo – falou ele, olhando para o nada do escuro, lembrando o momento.
- Como ela é? Como ela é? – perguntou ela com empolgação, olhando para ele, mesmo só conseguindo distinguir a silhueta devido à escuridão do quarto.
- Amarelinha, amarelinha...que coisa mais linda, mulher...e tem um macaquinho desenhado nela...uma belezura!!! – disse quase sussurrando para si mesmo que ela teve que chegar mais perto para escutar o final da frase.
Houve um silêncio sepulcral nos minutos que se passaram, interrompido por ele, continuando a narrativa:
- O Antero me disse que lá na obra perto do centro teve um cara que recebeu uma de 50!!!
- Cinqüenta?? Não pode ser, homem de Deus!!! Tem certeza de ouviu 50??? – ela já estava de pé em cima da cama e vez por outra mordia a ponta do lençol.
- Ouvi. – disse ele ainda no transe, imaginando como seria a nota de 50, inédita aos seus olhos.
- E ainda dizem que existe uma de 100 “real”!! – continuou ele.
- Cem??? – disse ela, dessa vez gritando, desequilibrando-se e caindo da cama, causando um barulho estrondoso. Nem o tombo foi suficiente para fazê-los parar de imaginar como seria a lendária nota de 100, somente o choro do filho menor os trouxe de volta para a realidade.
Ela preparou-lhe uma mamadeira de água de arroz fervido para enganar a fome cruel e o devolveu ao berço que dividia com mais um pequeno.Voltaram a deitar, sem conseguir dormir. Ela de lado, de costas para ele, com o lençol até a cintura. Ele, olhando o teto, com a mão sob a cabeça. Dessa vez não raspavam tijolos sem reboco ou olhavam goteiras no escuro. Esqueceram-se momentaneamente até da fome que era inquilina fiel de seus estômagos. Sonhavam acordados com as mais variadas cores e desenhos que poderiam estar na nota de 100 que seguravam em suas imaginações.

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